terça-feira, junho 26, 2007

9 Tesourinha: o grande herói do Rolo Compressor


Escrito por Raul Pons


A várzea porto-alegrense era um verdadeiro celeiro de craques, na década de 1930. Existiam dezenas de ligas e centenas de clubes que agitavam a vida esportiva dos bairros. Na Associação Tristezense de Esportes (ATEA), despontavam o Botafogo, o Tristezense, o Villa Nova e o Villa Crystal, entre outros. A Liga Esportiva do Menino Deus (LEMD) e a Liga Athlética Porto Alegrense (LAPA) também reuniam clubes importantes (o Renner, por exemplo, jogou várias temporadas na LAPA).

A região da Santana também era tradicional no futebol porto-alegrense, com o 20 de Setembro e Gaúcho. Rey da Zona, Juventude, Bambala, Flor da Pintada, Guanabara, Santanense, Pombal, Pernambuco e muitos outros clubes entravam em ação todos os finais de semana nos campos da Avenida Italiana, das ruas Arlindo, Sans-Souci e Santana e no fim da linha do bonde Menino Deus, entre outros locais.

Nesse ambiente futebolístico o adolescente Osmar Fortes Barcelos, nascido em 3 de outubro de 1921, começou a jogar suas primeiras partidas. O ex-atleta gremista, Severino Franco da Silva (o Lagarto), treinava equipes de garotos que destacavam-se nos torneios varzeanos. Com ele, Osmar, que já era chamado de Tesourinha (apelido herdado do bloco carnavalesco “Os Tesouras”, dirigido pela sua família), começou a destacar-se, chamando a atenção dos clubes profissionais da cidade.

Em 1939, antes mesmo de completar 18 anos, Tesourinha passou a ser disputado por dois clubes: Internacional e Ferroviário. O Colorado era um clube muito melhor estruturado e estava na Série A, mas o Ferroviário, apesar de estar na Série B, contava com vários amigos de Tesourinha, da várzea. Apesar do profissionalismo ser recente em Porto Alegre (foi oficializado apenas em 1937), Tesourinha acabou decidindo pelo clube que lhe oferecia melhores chances de se realizar no futebol.

A temporada de 1939 já estava quase no fim, quando começou o campeonato citadino. O Internacional tinha ganho seu último título em 1936, mas a conquista do Torneio Relâmpago (que definiu os clubes que formariam as Séries A e B) deu novo ânimo à torcida. Contudo, os esperados reforços não chegaram, apenas desconhecidas apostas, entre as quais Tesourinha.

Tesourinha estreou no Internacional em 22.10, no 2º jogo do Colorado pelo campeonato municipal, vitória de 2x1 sobre o Cruzeiro, nos Eucaliptos. Ele substituiu Carlitos, durante a partida. Foi uma das poucas partidas de Tesourinha como ponteiro-esquerdo, sua posição original. A categoria de Carlitos, também uma jovem promessa, mas já afirmado no time, fez com que Tesoura fosse deslocado para a direita. A convocação de Carlitos para a seleção gaúcha deu a Tesourinha a chance de atuar nas duas partidas seguintes (3x3 Americano e 5x3 Força e Luz). O primeiro gol só viria em um amistoso, na sua 4ª partida: 7x0 no Força e Luz. Em compensação, na abertura do returno, em 04.01.1940, o Internacional goleou o Grêmio por 6x1, e Tesourinha marcou o 2º gol colorado, aos 14 minutos do 1º tempo. Tesourinha jogaria todas as demais partidas do campeonato municipal, mas só voltaria a marcar no Gre-Nal decisivo, quando o Internacional perdeu por 4x2. Apesar da derrota, estava montada a base do grande esquadrão que comandaria o futebol gaúcho por 10 anos.

O campeonato municipal de 1940 prometia: o Cruzeiro contratou Walter Plá, campeão gaúcho de 1939 pelo Riograndense RG. O Força e Luz trouxe Acácio, Brandão e Filhinho, todos do Internacional. O São José contratou Alemãozinho (ex-Grêmio) e manteve o veterano Javel. O Internacional contratou Marques (ex-Cruzeiro) e o Grêmio, César (ex-Americano). Mas o grande destaque da temporada seria Tesourinha. O craque-revelação disputou todas as partidas do campeonato, marcando 6 gols e colaborando decisivamente para o título colorado. Também destacou-se no campeonato gaúcho, sendo escolhido o melhor jogador em campo, na final.

Em 1941, bicampeão citadino e gaúcho, com direito a dois gols na final do estadual. Em 1942, repete-se a dose: tricampeão, e gol na final do estadual. 1943? Tetracampeão citadino e gaúcho, três gols marcados na final do estadual. A situação não mudou em 1944. O pentacampeonato citadino foi alcançado de maneira dramática. No Gre-Nal decisivo, o Internacional precisava vencer, e abriu o marcador aos 20 segundos, antes que qualquer gremista tocasse na bola, após receber um passe de Tesourinha. No início da 2ª etapa o Colorado fez mais um, mas começaram as lesões: Carlitos, Assis e Alfeu. Como não havia substituições, os três ficaram fazendo número em campo. Tesourinha teve de recuar e jogar de lateral, mas no fim o Colorado venceu, 2x1. Na decisão do estadual, mais um gol.

A fama nacional já havia chegado: Corinthians, Flamengo, Botafogo, São Paulo e Palmeiras tentaram contratá-lo, sem sucesso. Ainda em 1944, dois grandes momentos em sua vida: a estréia na seleção brasileira, em 14.05 (goleada de 6x1 no poderoso Uruguai, com um gol do ponteiro colorado), e a memorável vitória da seleção gaúcha sobre a paulista, por 2x1, pelo campeonato brasileiro de seleções, no Rio de Janeiro.
Em 1945, o hexacampeonato citadino e gaúcho (Tesourinha marcou dois gols na final do estadual). Com a conquista inédita, os jogadores colorados foram diplomados doutores de futebol. Pela seleção brasileira, disputou o campeonato sul-americano, quando foi escolhido o melhor ponteiro-direito do continente. Em 1946, novamente foi eleito o melhor sul-americano da posição. Mas o Internacional perdeu o campeonato citadino para o Grêmio.

Em 1947 o Rolo Compressor decidiu recuperar a hegemonia local. Ganhou o municipal e o estadual. Machucado, Tesourinha não jogou a decisão estadual, e pela primeira vez desde sua estréia, o clube foi campeão gaúcho sem um gol de Tesourinha. Mas neste ano o Internacional mostrou sua força também em amistosos contra adversários de fora do estado e do país. Bateu, entre outros, o Sol de América do Paraguai (5x0) e o América do Rio (3x1). Mas a vitória mais marcante foi o acachapante 6x2 sobre o incensado Flamengo. Nesta partida Tesourinha marcou três gols. O passeio foi tão grande que em determinado momento o lateral-esquerdo rubro-negro Jaime reclamou com Biguá, lateral-direito: “Cuida o teu lado, o Carlitos já fez dois gols!”, e ouviu de resposta: “Cala a boca, que o Tesourinha já fez três pelo teu lado!”.

Em 1948, Tesourinha foi bicampeão citadino e estadual. Disputou o Gre-Nal de 17.10, vencido pelo Colorado por 7x0 (maior goleada do clássico na era profissional), mas não marcou gols. No campeonato estadual, disputou as 4 partidas, marcando 2 gols, mas nenhum na final.

O ano de 1949 marcou o auge da carreira de Tesourinha. Pela Seleção Brasileira, foi campeão sul-americano, marcando dois gols na final, contra o Paraguai. Também foi escolhido o “Melhoral dos Cracks”, em uma promoção promovida pelo comprimido Melhoral, em todo o país. Tesourinha recebeu mais votos que os jogadores do eixo RJ-SP. No Rio Grande do Sul, porém, as coisas não foram boas. A perda do título para o Grêmio e uma lesão no joelho, que o perseguia, levaram a direção colorada a negociá-lo com o Vasco da Gama, no final de 1949, por 300 mil cruzeiros (uma fortuna, na época) e o passe do atacante Solís.

No Rio, Tesourinha fez história no Vasco, e era titular absoluto da seleção que disputaria a Copa do Mundo de 1950, mas uma lesão no joelho o tirou do Mundial. No Rio, destacou-se também na Seleção Carioca, pela qual foi campeão brasileiro. No final de 1951, aos 30 anos, Tesourinha já era considerado um jogador veterano, principalmente devido ao problema crônico no joelho. Dispensado pelo Vasco, voltou a Porto Alegre e tentou jogar no Internacional, mas a direção preferiu não contratá-lo. Assim, surgiu a proposta do Grêmio.

Saturnino Vanzelotti pretendia contratar Tesourinha, para romper com a tradição racista do Grêmio. Tesourinha era um jogador consagrado, mas mesmo assim, sócios e dirigentes gremistas foram à imprensa, publicar uma nota contrária à contração de um jogador negro. Tesourinha não ganhou títulos pelo Grêmio, mas sua maior vitória no clube foi ferir de morte o preconceito tricolor.

No final de 1954, Tesourinha foi dispensado pelo Grêmio e transferiu-se para o pequeno Nacional, onde jogou até setembro de 1957. A despedida de Tesourinha do futebol ocorreu no Dia do Cronista de 1957. Esta data era comumente celebrada com torneios e amistosos festivos. Neste ano realizaram-se três amistosos no Estádio Olímpico (Aimoré 1x0 Renner, Cruzeiro 1x0 Internacional e Grêmio 1x1 Corinthians-SP). Antes da última partida, Tesourinha fez a volta olímpica no gramado, deu o pontapé inicial à partida vestindo a camiseta do Nacional, para a seguir descalçar as chuteiras, encerrando as suas atividades como atleta profissional.

Dias antes da partida inaugural do Beira-Rio, o Internacional disputou um amistoso com o Rio Grande, preparando uma surpresa à sua torcida. No 2º tempo Tesourinha substituiu Bráulio na partida vencida pelo Colorado por 4x1. Após o jogo as luzes do Estádio apagaram-se e, ao som do hino do Internacional, Tesourinha e Carlitos retiraram as redes do estádio e levaram-nas para o vestiário. Voltava finalmente o craque a vestir o uniforme do clube que amava.

Os anos 70 marcaram a melhor período da história do Internacional, mas foram também o ocaso da existência de Osmar, o Tesourinha. Em 1977 o ex-jogador passou a ter problemas de estômago e a partir do ano seguinte iniciaram-se uma série de internações hospitalares: Hospital Petrópolis, Hospital de Clínicas e Hospital Conceição. Em 16 de junho de 1979 o câncer finalmente venceu o grande jogador, que até hoje gera polêmica sobre quem teria sido melhor: Tesourinha ou Garrincha?


9 Comentários:

luís felipe disse...

deve ter sido muito emocionante a despedida de Tesourinha do futebol, e da torcida colorada dos Eucaliptos. Acho que naquela época sabíamos valorizar bem mais nossos ídolos. Hoje, se Falcão vestir a camisa do Internacional no campo, vai ter gente olhando de cara feia e dizendo que Fernandão é mais ídolo...

adorei o texto, Raul. Aliás, resgates históricos bem escritos como os teus são sempre deliciosos.

luís felipe disse...

Raul, rolou na Internet uma história que diz que o pai de Lupicínio Rodrigues não entrou no Inter por discriminação social. Que o Riograndense, clube que o Lupi pai presidia, era um clube de negros e por isso não teria sido aceito pelo Inter. Até quando é verdade essa história? Abraços.

Gerson Sicca disse...

Legal contar a história do Tesourinha. Como não havia na época um campeonato brasileiro, faltou pra ele a consagração em uma copa do mundo. pena que a segunda guerra impediu a copa de 1946 e a de 50 ele não teve condições de jogar. Se tivesse jogado, poderia ter maior reconhecimento.

Deco disse...

Emocionante a estória Raul, muito bem contada. Sem dúvida foi um dos maiores craques do futebol, uma pena não ter sido mais reconhecido.
E um abraço ao Sicca que escreveu aí em cima.
Deco Pedrollo

cjr-sp disse...

É tesourinha, foi respeitado Brasil afora...

Da década de 70 para cá eu consigo falar de qq jogador de qq time do brasil e até do mundo em alguns casos.

Por isso consigo dizer na minha modesta opiniao, quando me perguntado se determinado jogador da decada de 70 jogaria no futebol de hoje ou nao...

Agora da época do rolo compressor, nao consigo ter uma ideia...seria interessante se o Raul, ou alguem pudesse dizer se um jogador desse nível jogaria no futebol do jeito que é hoje??...logicamente que guardada as devidas proporçoes...

Sds.

cjr-sp disse...

Aqui tb vai uma sugestao minha de um post especifico sobre importante titulo ganho pelo Inter, representando a seleçao brasileira no panamericano de 56. E a mesma coisa para a medalha de prata em los angeles com o Inter de jair pcerni e mais alguns de fora...acho que sao duas conquistas com a camisa amarela que poucos clubes tiveram essa oportunidades e deveríamos clarear mais esses topicos, principalmenente o de 56, quem sabe nao temos algum reconhecimento especial da fifa, afinal foram cometiçoes oficiais que o inter trouxe o caneco para o brasil..e devemos divulga-las... quem sabe nao ganhamos algo importante oficializado pela FIFA. O palmeiras e o fluminense andaram atras de uns titulos fantasmas e tao na cola para ver se sai alguma coisa...

Raul Pons disse...

Luís Felipe:

Quanto à história do Riograndense:
1º É baseada em um livro escrito pelo Lupi, e em uma parte do livro ele tenta justificar o fato de sua família ser gremista, em uma época que eram raros os negros gremistas.
2º A versão do Lupi diz que o Riograndense tentou ingressar na liga oficial de Porto Alegre, mas o Internacional foi contra. Por isso, a família do Lupi (o pai dele foi presidente do Riograndense) passou a torcer pelo Grêmio.
3º O texto do Lupi (são duas páginas do livro dele) é cheio de erros históricos. Ele chega a dizer que o Grêmio se chamava Fussball, nos primeiros anos.
4º O Riograndense era um clube que participou das entidades genericamente chamadas "Liga da Canela Preta", mas definia-se como um clube de mulatos, e não de negros, o que causava mal-estar entre os clubes assumidamente negros.
5º O Lupi não faz referência ao ano em que este pedido de ingresso na liga tenha ocorrido. Já pesquisei vários anos das dpecadas de 1920 e 1930, e nunca encontrei nada parecido. Pode até ter ocorrido este pedido, mas se o Internacional foi contra, certamente não foi por racismo, mas por deixar fora da liga clubes nos quais ele se abastecia de craques, e que se entrassem na liga, seria mais complicado adquirir jogadores destes clubes.
6º Neste mesmo livro, o Lupi diz que o Grêmio nunca foi contra jogadores negros, mas "uma cláusula no contrato de doação da Baixada para o Grêmio, pelos alemães que compraram o estádio, proibia negros no clube por 50 anos". Só que a Baixada não foi doada, e sim comprada pelo Grêmio. Os "alemães" não eram algo a parte do Grêmio, e sim o próprio Grêmio, clube da comunidade germânica. E a Baixada foi comprada em 1911, assim, se tal cláusula existisse, se manteria até 1961, e não 1952. O Lupi tentou justificar o injustificável.

Raul Pons disse...

Cjr:

Até posso escrever artigos sobre o Panamericano de 1956 e as Olimpíadas. Material para isso, tenho.

Mas não são conquistas do Internacional, como clube, e sim de atletas do clube, servindo à seleção brasileira. Em 1956, sequer tínhamos a maioria dos convocados (embora a maioria dos titulares fossem colorados). Não vejo como a CBF poderia nos premiar com algo oficial, a não ser o reconhecimento de termos cedido vários jogadores nestas competições. Mas seria algo como o Botafogo ou o Santos exigirem o reconhecimento oficial pelos títulos mundiais de 1958 e 1962.

Raul Pons disse...

Daniel:

Acredito que Tesourinha jogaria sem problemas no futebol atual. Ele era um jogador versátil, que atuava em várias posições. Ponteiro-esquerdo de origem, transferiu-se para a direita, e foi um dos melhores do país, em todos os tempos (gente que conhecia muito sobre futebol, como Zizinho, considerava ele melhor que Garrincha), e atuou tb como centroavante. No Gre-Nal de 1944, atuou como lateral, com funções defensivas. E certamente, em muitas partidas, quando necessário, fechava o meio-campo.

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