sexta-feira, outubro 05, 2007

22 Chapada Bonita

22

ESCRITO POR RAFAEL SEVERO

Dos altiplanos esverdeados dos campos de cima da serra há um corte abrupto no solo, que descortina o imenso vale que desce em diagonal por cerca de mil e trezentos metros, na direção azulada do mar. A visão é plena, única e arrebatadora. Capões de araucárias fazem companhia e completam o cenário, emoldurando-o por sobre as ondulações verde-amareladas pra onde quer que se olhe. O local há muito transgrediu o conceito óbvio de beleza e absolutamente nada macula o escopo generoso de suas formas.

Minha avó assim descreve o paraíso. Pelo menos, o paraíso dela. Nascida em São Leopoldo, Elygia Maria Velho Severo foi levada quando ainda criança de colo para a fazenda do pai, no município de São José dos Ausentes, simplesmente o local mais alto e belo deste estado.

Ela me narra que passou a infância por lá e que nas terras da família havia um lugar de beleza sem igual, denominado Chapada Bonita. A narrativa da “véinha” é detalhadamente rica, lúdica e, sobretudo, lúcida. E me soa assim saudosa, quase chorosa. Mas não é um choro de tristeza. Há um relevo melancólico em suas palavras, é verdade, mas sempre emanado em tom de uma felicidade nostálgica. Pra mim, é meio triste. Pra ela, no entanto, aquilo é que era vida e estava arraigado de modo essencial à sua formação.

É claro que já ouvi um milhão e trezentas mil vezes as aventuras da minha avó em sua Chapada Bonita, mas por mais repetitivas que sejam, sempre colho algum dado novo e interessante. Sem eles, não poderia contar aqui sobre os banhos que minha avó tomava nas águas cristalinas dos rios de fundo de pedra ou de grama, era só escolher... Dos invernos impiedosos de ventos cortantes e de congelar os ossos. Das brincadeiras na neve com os irmãos. Dos pés “rachados” pelas geadas no campo. Da vista indescritível que tinham do alto da Chapada Bonita. Da neblina que subia do vale, fazendo a noite se antecipar. Do camargo (espécie de café com leite espumoso, da região) quentinho logo cedo. Das viagens a cavalo do pai.


Juro que se ela me contar mais umas três vezes essas histórias eu sentirei até o cheiro do lugar e escutarei o estardalhaço da gralha azul... Mas juro também que a levarei até o local novamente, pois minha avozinha está com 82 anos e acho que não há nada mais justo do que presenteá-la com um passeio de reencontro com a sua Chapada Bonita. Inclusive, estou finalmente providenciando a retirada tardia da minha carteira de motorista, – sim, não tenho carteira de motorista, e daí? – pois esta tarefa é minha, só minha!

Onde quero chegar com tudo isso? Quero dizer que passei minha infância, adolescência e parte da minha vida adulta sonhando com meu paraíso perfeito, com a minha Chapada Bonita. Temporão, ele finalmente revelou-se ano passado. Final do ano, melhor dizendo. O engraçado é que eu não estava fisicamente presente no lugar... meu paraíso cabia todo dentro de uma tela de TV.

Por noventa minutos, eu pude finalmente desvendar meu “altiplano verdejante”, meu local perfeito e preferido. Hoje eu sei: Yokohama é a minha Chapada Bonita. E afirmo: antes tarde do que nunca!

Minha avó levará oitenta e poucos anos para reencontrar seu paraíso. Eu não sei se terei a mesma paciência dela para viver tanto. O que eu espero, isso sim, é viver o suficiente para, quem sabe, um dia, reencontrar a minha Chapada Bonita.