Antes de mais nada, a pergunta que não quer calar: Serviu pra alguma coisa a "estupenda" Lei Seca nos estádios?
Cacalo,
Nos tempos da minha avó a imagem do macho se personificava no ato de chegar e ter janta a ponto de servir, sob pena de alguma reação agressiva. O que fazia a minha vó? Atrasava o relógio em 15 minutos quando algum imprevisto lhe interrompera o preparo. Meu avô nem percebia. E para minha avó, certamente, o homem de verdade seria aquele que chegasse a casa com uma garrafa de vinho perguntando: bebemos uma taça antes do jantar?
Nos tempos da minha mãe o macho era aquele que lhe proporcionasse uma vida segura, estruturada. O almoço já não era mais o tópico da repressão, era o comprimento da nova sensação da moda, a mini-saia. Meus pais já estão separados há anos e minha mãe é a grande responsável pela formação acadêmica, em ordem crescente cronológica, de uma médica, uma arquiteta, um publicitário e um engenheiro civil; seus quatro filhos.
Nos meus tempos, os dias de hoje, o macho se auto-denomina erroneamente o vilão, o valente, o traficante, fortão, o que bate mais... Há pouco tempo prestigiei o último show da banda Ultramen em Porto Alegre, quando um desse tipo tentava, precisava, provocava a todo custo uma briga, sempre com rapazes fisicamente desfavorecidos, até que o empurra-empurra foi pro lado onde estavam eu e mais algumas mulheres. Toquei no seu ombro pedindo que tivesse coerência conosco. Foi pior. O grandalhão postou-se frente a mim, dizendo que eu ia apanhar. Até que contestei apavorada: mas eu sou mulher. Ele, no calor da hora, respondeu: não parece. Ora, beleza é subjetivo e não se pode agradar a todos. Não me considero uma sumidade, contudo, me garanto em frente ao espelho e vivo num patamar que me habilita a escolher quem e quando quero. E aquele, definitivamente, passa longe dos meus interesses. Pra ser bem sincera, nem ele mesmo acreditou no que me disse e o fez em conseqüência do momento em que suas reações clamavam pela suposta virilidade. Tanto que, em seguida, virou-se e saiu, ainda que na ânsia de externar sua visível carência de provar algo. Pra ele, que é macho, pra mim, um idiota. Assim que o sujeito se afastou, quem estava a minha volta e que não lhe enfrentou me deu a certeza que grifava meus pensamentos enquanto o tal macho se provalecia: esse aí não pega ninguém. E mais, durante os poucos minutos em que o “nofa, que forte” esbravejou na minha frente, torci muito para que os demais tivessem a lucidez de não revidar. Se o fizessem, iniciaria uma pancadaria generalizada e hoje eu poderia nem estar aqui, escrevendo essas linhas.
Percebo que a minha geração é a de mulheres que aterrorizam os homens. Pois a virilidade, pra nós, já não está na comida na mesa, arcamos igualmente com as despesas do lar. Também não nos rendemos a pressões de vestuário, cada qual usa o que lhe agrada e ao cônjuge cabe opinar em cor, modelo e não, comprimento da saia. Mas o ponto forte está na postura “valente”. Já não nos atrai, pelo contrário, causa aversão, o famoso papai tô forte. Esse, de verdade, é muito pouco viril. O macho de hoje é aquele que na iminência de uma briga, segura a mão da namorada e sai de fininho, porque é a única maneira efetiva de proteção. Ao impetuoso brigão denominamos pouca prática.
Isso explica muita coisa sobre o medo que provocamos. Aos bravos guerreiros de coisa nenhuma resta a pergunta: o que fazer se os hábitos primatas já não convecem?
Bom, resta sair do armário ou evoluir. Não há outro caminho.
Não necessitamos sustento, não padecemos de julgamentos, freqüentamos estádios, falamos, jogamos futebol e tampouco nos deslumbramos com valentias estúpidas. Gostamos mais daquele cara esquisito, um pouco magrelo, ou desforme, um pouco barrigudo, ou simplesmanete normal. Até sem qualquer habilidade desportiva, mas sempre com intelecto operante. Este é, com certeza, muito atraente. Também não rechassamos o braço forte, o atlético, desde que não atrofie o cérebro. Mulher gosta de homem divertido, ou caladão, não precisa ser bonito, pode ser atrapalhado. Se for um pé de valsa, ótimo, mas pode dançar esquisito, sem problemas. O que não pode é vangloriar-se de uma guerra ignorante, com conseqüências graves. Um fim que se aproxima, condenando o maior clássico do país a grenal de torcida única.
Não é novidade que a maioria dos torcedores que freqüentam a arquibancada visitante, no estádio rival, são, de maneira coloquial, as jóínha. Há tempos que deixou de ser possível um torcedor comum, mulher, criança, magrelo ou vovô assistirem a um grenal na casa do adversário. É lógico que entre os 3000 gremistas que avançaram estava, em grande parte, a turma que não pega ninguém e nada (além do placar) tem a perder. E, mais lógico ainda, que nos 20000 colorados que recuaram havia mulheres, crianças e idosos. Quem te parece, nestas circunstâncias, o másculo, valente? E mais, qual é o imbecil nesse mundo que pensa em desmontar-se em peleia quando o placar do jogo lhe favorece em 4x1? Se segues, caro Cacalo, estufando o peito pra repetir que são os 3000, convido-te a assistir a um grenal da arquibancada, junto aos que sofrem, de fato, com todo esse horror. Da cabine, camarote, cadeira ou posto privilegiado, creio que está muito fácil falar com tamanho ímpeto. Creio que estás muito macho pra pouca realidade.
Para mim não existe visão mais bonita que o verde do gramado, com o vermelho e azul dos uniformes saltando num contraste magnífico. Estendendo até a arquibancada, me parece o ápice da ideologia de rivalidade: uma mancha azul em meio ao mar vermelho, e vice-versa. Isso vai morrer, está definhando clássico a clássico. E, se não tens qualquer criatividade para ajudar a frear esse movimento irracional, por favor, não atrapalhe. Ainda há torcedores da dupla que acreditam em convívio salutar. Tenho amigos, vizinhos, colegas de trabalho, parentes, pessoas de quem gosto muito, que são gremistas. Sei que nenhum deles está feliz com pedras, mijo e declarações inoportunas de qualquer parte.
O pior nem é a reação que provocam tuas palavras, o mais grave é imaginar que se um alto representante do clube profere distorções de força e coragem, que dirá as joínha? O reflexo desse comentário “inofensivo” está nas agressões que ainda terminarão em morte. Destes torcedores canibais, colorados ou gremistas, desisto de esperar inteligência. De ti, Cacalo, tampouco espero bom senso. Mas a estes amigos que tenho e que são torcedores do teu clube, pelo bem que resiste entre nós apesar dos lamentáveis fatos rotineiros do clássico, peço que te mandem calar a boca.
*Na fase final da Libertadores 2006, perdemos Tinga num momento delicado. Na época Fernando Carvalho proferiu palavras de apoio dizendo que o grupo deveria jogar por ele, gigante do elenco. Hoje, diante dos atuais desafios, o grupo colorado deverá enfrentar as próximas batalhas por Guiñazu.
E vamo-le-que-vamo.