Escrito por Rafael Severo
Hoje vim trabalhar de vermelho,
pois à noite tenho compromisso...
Há uma história em torno da construção do Beira-rio, ou Gigante, como preferem alguns, que relata doações por parte da torcida de toda sorte de material de construção. Todo dia, o canteiro de obras do estádio amanhecia com novos tijolos, sacos de cimento, vigas de aço, enfim... Eram doações que vinham do mais abonado ao mais humilde dos colorados. Inclusive, há uma sub-história dentro desta história que revela um destes tantos benfeitores: Paulo Roberto Falcão. Contam os antigos que o então menino Falcão compareceu de mãos dadas com seu pai à enorme construção e depositou alguns tijolos no solo sagrado da futura casa colorada.
Mãos sagradas, solo sagrado... Eu não tenho idéia se o Falcão imaginava que um dia pisaria na grama sagrada do estádio que ajudou a erguer e, por quase uma década, se tornaria ídolo máximo do Internacional. Ídolo sagrado e consagrado!
O que eu tenho certeza que o Falcão nem imagina é que fui um guri carente de ídolos na infância. Meu ídolo maior era o Zangado, tiranossauro rex que vivia querendo comer o Marschall, o Will e a Rolly, da série O Elo Perdido.
Mas isso até eu ouvir falar das peripécias do Paulo Roberto Falcão com a cinco do meu Colorado. Sim, o Falcão foi meu primeiro ídolo de verdade. E posso dizer que sempre fui uma espécie de órfão deste ídolo, uma vez que nunca o vi jogar com a camiseta do meu time. Até nasci na década em que ele ajudou a fazer do Internacional o clube mais poderoso e temido do país. No entanto, quando comecei a atentar para o futebol, ele já desfilava sua gigantesca categoria milhares de quilômetros de onde eu gostaria que estivesse de fato.
Eu só podia cultivar minha idolatria através dos álbuns de figurinhas, de videoteipes dos melhores momentos no Inter e na Seleção de 82. Nas peladas com os amigos eu era sempre o "Rafão", assim terminado em "ão" mesmo, alusão clara a ele, ao Falcão, herói superlativo cujo retorno triunfante sempre sonhei, mas o qual nunca aconteceu. Todos queriam a dez, eu queria a cinco...
Mais tarde, relevei suas pequenas traições, como preferir jogar no San Pablo no retorno ao Brasil. Como, já como treinador, decidir abandonar o Colorado em meio ao campeonato brasileiro de 1993, atrás dos dólares japoneses, bem como suas constantes declarações de amor à Roma.
O Falcão talvez seja um Figueroa às avessas. E explico: o ídolo chileno certamente torce por algum clube no Chile, mas por estas razões do futebol, adotou o Colorado como time do coração e a todo momento declara seu amor por ele. Entendo que pode ser o caso do Falcão. Talvez ele tenha a Roma como grande amor clubístico e o Colorado como segundo clube. Talvez seja apenas delírio meu. Mas se não for, é do jogo... O que interessa é que eu perdôo todos esses desvios do ídolo.
De qualquer forma, confesso mesmo que este já não tem tanta força junto a mim. Volúvel que sou, digo que até já o substituí por outro "ão", aquele que o eterno Fernando Carvalho declarou ter ultrapassado Falcão, o ão antigo, na condição de ídolo máximo do clube. Estou me referindo a Fernandão, O Cara!
Eu sou volúvel, eu sei, mas a verdade é que vi o Fernandão fazer tudo aquilo que me foi privado na época do Falcão. Eu não vi o Falcão colocar os tijolinhos na porta do Beira-rio. Eu não vi o Falcão realizando jogadas mágicas com a cinco do Inter. Eu não vi sequer um jogo do Falcão no Gigante. Não vi os gols do Falcão. Não o vi erguer as taças do primeiro título nacional, do bi e do tri. E nem vi o Falcão declarando amor ao Inter.
Agora, depois de adulto, eu me orgulho em finalmente poder dizer que vi com meus próprios olhos alguém fazer tudo isso pelo meu, pelo nosso clube. Um ídolo que é mais novo do que eu, é verdade, mas ídolos dispensam essa condição própria dos mortais. Um ídolo que, milagrosamente, ainda está por aqui.
Eu vi o Fernandão fazer o gol mil em grenais, eu vi o Fernandão fazer "trocentos" gols de cabeça. Eu vi o Fernandão fazendo gol de bicicleta, de pé direito, de pé esquerdo. Eu vi o Fernandão pegando a sobra do Ceni na final da LA 2006. E também o vi colocando a bola na cabeça do Tinga no segundo gol. Eu vi o Fernandão levantando a taça da Libertadores no Gigante abarrotado. Vi o Fernandão levantando a taça de Campeão do Mundo, no Japão. Vi, o Fernandão, goiano de nascimento, declarando de forma emocionada, em programa de rede nacional, que "é um apaixonado pelo Internacional".
O Fernandão só não doou tijolos para a construção do nosso estádio, mas ajudou a construir e levantar o nome do nosso clube em proporções tão gigantescas quanto a nossa torcida, quanto a nossa crença em dias melhores, quanto nosso Gigante, o mesmo que o Falcão ajudou a construir com as mãos e depois com os pés há décadas atrás.
E é nesse ponto que converge o bonito da história: talvez Fernandão seja mesmo maior que Falcão em nossos corações. Talvez o Gigante venha a ser um estádio moderníssimo e a história do nosso clube seja ainda mais gloriosa que a atual. Contaremos aos nossos filhos e netos sobre as peripécias do Fernandão, O Cara, com a camiseta nove do Colorado. Contaremos que esse Cara ajudou a construir o Inter moderno e poderoso para o qual eles torcem. Mas no fundo, bem no fundo, saberemos todos que os tijolinhos doados pelo Paulo Roberto Falcão ainda estarão lá, firmes, em algum cantinho da estrutura, a sustentar o Gigante.
...Hoje vim trabalhar de vermelho, pois à noite vou ao cinema conferir o filme Gigante.