segunda-feira, julho 14, 2008

52 Procuram-se façanhas

52

O Brasil amargou uma ditadura por vinte anos e hoje percebemos algum vestígio discreto, em uma ou outra manifestação cultural. Há um tempo quase não se fala mais nos anos “dourados”, a menos que se escute um disco de Chico Buarque. Os regimes ditatoriais marcaram um período no continente latino. Mas não somente a América desfrutou desse “prazer”, a imposição também deixou seu rastro por muitos países mundo afora e em alguns permanece ativa, perplexamente, em 2008.

Tenho muita implicância com a China, que consegue cultivar o pior das duas formas de governo: selvageria do capitalismo que distorce a essência democrática, em conjunto com as privações de liberdade que corromperam e inviabilizaram regimes comunistas por toda a história da humanidade. Nunca consegui me entregar a uma causa política de corpo e alma. Acredito em democracia, porque sou a favor da propriedade privada. Contudo, que tipo de governo para a maioria pode ser generoso quando exclui os menos favorecidos? Esses que vivem a margem das oportunidades ditas neo-liberais (bem isso mesmo, nova liberdade, novo conceito, exclusivo para alguns) são tão prisioneiros quanto um jornalista na China, que não pode escrever o que pensa quando o que pensa vai contra o seu governo. Refletir sobre essas coisas causa certa depressão, parece que vamos perdendo a fé no ser humano.

No Brasil uma geração brigou, apanhou, morreu por uma causa política. Eu pertenço à geração seguinte, que cresceu em berço esplêndido quando se fala em liberdade de expressão. E às vezes me pergunto se sabemos aproveitar esse deleite. A população brasileira é tão passiva, temos pouca motivação para reivindicar nossos direitos. Somos pouco politizados, parece que depois da ditadura ficamos sem causa. O que em verdade não ocorre, há muita desigualdade em nossas terras para sentarmos em frente a uma TV num domingo e celebrarmos bestialmente a dança dos famosos. Muitos de nós sabemos dessa hipnose social, mas pouco, de fato, fazemos pra mudar essa situação.

Em contrapartida, quando o assunto é futebol temos 180 milhões de técnicos espalhados por todos os cantos. Somos mobilizados, lotamos estádios, discutimos escalações e nesse espaço mesmo diariamente questionamos o que se passa no Inter, dentro e fora de campo. Não penso que esse genoma futebolístico nos torna alienados, muito pelo contrário. É através de fóruns como este que se pratica o ato envolvente e eloqüente do debate. É, falando de maneira coloquial, um tesão. O exercício da palavra é realmente um tesão.

Ao sairmos do miolo da rotina, olhamos pela janelinha e acabamos comparando situações. Quando eu vi tudo que estava por trás da seleção espanhola me questionei sobre muitas coisas. Porque não mais vibramos com a mesma intensidade por nossa seleção? Seria este um reflexo da nossa apatia cívica? Já disse isso aqui e sem mencionar com ares de inventei a roda, futebol é mais do que esporte, é movimento popular. Sendo assim, considerando que nossa camisa é mais da Nike do que nossa e que nossos atletas são mais produtos que gente, parece que estamos sem causa.

Já aqui a simbologia dessa Eurocopa abrange mais do que se possa imaginar desse lado aí. A Espanha também teve ditadura, a de Franco, que durou quase o dobro da nossa, iniciou em 1936 e acabou nos anos setenta, com a morte do excêntrico general. Existem duas diferenças do que passamos com o mesmo tipo de regime: nossos militares renderam-se, gradualmente, à democracia. Aqui o terror só acabou quando Franco morreu, ele venceu o povo até o dia de sua morte. Outra questão e esta mais importante é que os espanhóis tiveram uma guerra civil de 1936 até 1939, quando, nesse período, mataram uns aos outros por suas causas políticas ou serviços militares. Até que o exército dominou e imperou anos de tortura e repressão.

Antes da guerra civil a Espanha tinha uma bandeira com três cores: amarela, vermelha e púrpura. E tinha um hino que falava Libertad três vezes no refrão. Com Franco as cores passaram para o vermelho e amarelo, o hino foi modificado. Quando a democracia voltou (em termos, até hoje há um rei, porém, com funções diplomáticas apenas), não retornou a bandeira da república, seguiu a mesma do Franco. E o hino continuou com a mesma melodia, mas ficou sem letra. A Espanha tem hino sem letra. Por aí se pode imaginar o tamanho da cicatriz que ficou. E o futebol? Muita, mas muita frustração. Os clubes não preciso explicar em que máquinas rentáveis converteram-se. Mas a seleção estigmatizou no quase. Quase passaram das quartas, quase venceram a Itália, quase foram campeões. E a bandeira de duas cores e o hino sem letra.

Até que ganharam essa Eurocopa. Entre vibrações e ruas lotadas, muitas pessoas, de verdade, contiveram-se no patriotismo pelo medo que causa a euforia extremada pela bandeira. É como se o país estivesse durante anos escondido em memórias dolorosas que suas cores provocam e que num momento explosivo que só futebol causa viu-se obrigado a enfrentar essas recordações. Eles não tremulavam sua bandeira e agora em quase todas as ruas aparece qualquer janela expondo uma. Parece que agora eles querem, através dessa conquista, identificar as cores com um novo parâmetro. Trata-se da nova simbologia da bandeira. Coisas magníficas do futebol.

Falei pra amigos daqui sobre o hino do Rio Grande do Sul e como os gaúchos manifestam um compromisso ímpar com essa música. Faz parte da nossa história, em especial, da nossa luta por reconhecimento no fim do sul do Brasil. A letra nos transforma em guerreiros e que sirvam nossas façanhas de modelo a toda terra. Pois bem, na trajetória do Sport Club Internacional creio que a causa maior foi chegar ao Japão. Na seleção brasileira o ponto máximo parece que foi o mundial de 94. E por quê? Pela esperança, pelo sonho que viveu em cada um de nós por anos e anos e que se tornou uma causa justa e nobre.

Será que precisamos sempre sofrer o desencanto para chegarmos até a vitória? Porque não sabemos agir em situações confortáveis? A pergunta que se faz por aqui, nesse momento, é se a Espanha saberá manter o mesmo espírito unido e vencedor da Eurocopa até o Mundial de 2010. Eu não sei, porque o Inter, a seleção brasileira, ambos perderam a gana quando o hipotético tornou-se real. Como filha de país com tamanho de continente, fica difícil, pra mim, espalhar tamanho ímpeto entre os brasileiros. É preciso mais do que estas palavras. Até porque, falando de seleção, no dia em que nosso ditador do futebol vir a falecer, tal como Franco, poderemos repensar nossa postura no futebol mundial. Não que eu deseje seu funeral, mas parece que o senhor só sai de lá assim, defunto. Porém, como colorada posso e devo anunciar a causa: o último campeonato brasileiro vencido por nós foi em 1979, ainda vivíamos uma ditadura da qual até podemos dizer que curamos as feridas, quando nos comparamos à Espanha. Passaram-se muitos anos e quase vencemos, não fossem atitudes sórdidas envolvendo esse mesmo ditador e sua corte privilegiada, que nos privaram da conquista em 2005. Ou seja, a causa existe, procuram-se façanhas.

Vamo Inter!