quarta-feira, junho 18, 2008

46 Colorado: Clube do Povo, Clube de todos

46


Manhã de 09.07.1911. Sebastião da Silva sai de sua casa, situada na Rua Boa Vista, na Colônia Africana. Antes de começar sua caminhada até o centro da cidade, Sebastião passa rapidamente pela igreja da Nossa Senhora da Piedade, pedir graças para seu compromisso, logo à tarde. Mais adiante, pede à benção de Mãe Dada, e a proteção dos orixás.

Antes do seu compromisso, uma paradinha no boteco do Tavares, para limpar a garganta com um gole de canha. Depois, segue pelo Caminho do Meio até a avenida Bonfim, e dali para o centro, onde ia defender algum trocado, fazendo biscates.

No mesmo horário, em um dos palacetes da Barros Cassal, Manoel Fontoura dos Santos, o Nelito, acorda ainda sob efeito do sarau dançante da noite anterior. Depois de dançar foxtrote com a bela Aninha das Graças, o final de semana seria perfeito com um bom resultado no seu compromisso da tarde.

Já são 14 horas. Sebastião apressa o passo, não quer chegar atrasado ao compromisso. Nelito, já na rua, ainda decide se irá a pé ou de bonde. Como está um dia bonito, apesar do frio inverno gaúcho, decide caminhar um pouco.

Às 14:45 horas, Sebastião e Nelito, dois desconhecidos, chegam ao seu objetivo: o campo da Várzea. Ali, em instantes, o Internacional entraria em campo, para bater-se com o 7 de Setembro, pelo campeonato da cidade.Nelito torce pelo Internacional pq o clube aceitava, sem maiores problemas, sócios vindos do interior, como ele. Além disso, alguns amigos e colegas da Faculdade de Medicina, como Carlos Kluwe, jogam no time rubro. Sebastião aprendeu a gostar daquele time quando passava pelo campo da redenção e via os treinos. Aqueles rapazes não tinham a mesma arrogância dos atletas do Fussball e Grêmio, e ele nunca fora barrado quando aproximava-se do campo, diferente do que ocorrera nos grounds da Voluntários da Pátria e dos Moinhos de Ventos. Além disso, diferente dos germânicos gremistas, no clube colorado ele percebia dois jogadores que, apesar de serem de famílias de classe média alta, tinham nitidamente sangue africano nas veias.

Ambos ficam na área reservada aos torcedores que assistem o jogo em pé. Normalmente Nelito teria ficado no pavilhão de madeira, mas havia chegado tarde, e o mesmo já estava lotado. Apesar de próximos fisicamente, a diferença social ainda mantém um cordão de isolamento entre os dois colorados.

15:00 horas. Começa o jogo! O Internacional veio a campo com Ávila II; Felizardo e Ygartua; Volkman, Kluwe e Padilha; Simão, Túlio, Galvão, Luiz Poppe e Vinholes.

O Internacional domina o adversário, mas o time está tenso, devido ao fracasso da partida anterior. Os jogadores encontram dificuldade de transformar o predomínio em gols. Os dois torcedores tb demonstram o mesmo nervosismo dos atletas. Quando Túlio chuta para o gol, mas o goleiro adversário defende, um “ohhh” percorre a torcida. Sebastião não resiste e comenta: “Hj tá difícil”. Nelito responde: “Tem tempo, ainda, tem tempo, ainda!”.

Como que confirmando as palavras de Nelito, Galvão estufa as redes do 7 de Setembro, no final da 1ª etapa. Mas logo na saída de bola, Davi empata. A torcida fica insatisfeita. Alguns reclamam que o tempo já havia encerrado e que o cronometrista não havia avisado o árbitro. O próprio juiz, Henrique Sommer, sócio e atleta do Grêmio, não conta com a simpatia dos colorados. Enquanto ele afastava-se para descansar, Sebastião acerta uma bergamota na cabeça, provocando risos na torcida.

Na segunda etapa, o jogo começa mais tenso. A torcida colorada decide participar, vaiando os adversários. Nelito, já enturmado com os torcedores do “baixo clero”, pede uma bergamota a Sebastião e acerta um dos jogadores do 7. O jogo segue e Vinholes, o primeiro artilheiro colorado, marca: 2x1. Festa vermelha! Em seguida, pênalti para o Colorado. Sommer não consegue encontrar a marca penal, no campo mal sinalizado.

Sebastião, acostumado com a Várzea, pula a cerca que separava a torcida do campo e mostra ao juiz o local correto. Kluwe bate e... gooool: 3x1. A torcida vibra. Nelito grita para seu colega, que o reconhece e vai cumprimentá-lo, à beira do gramado. Nelito apresenta rapidamente Sebastião, que abraça, emocionado, seu ídolo.

O jogo já se encaminhava para o final quando Túlio completou o placar: 4x1. Felizes, os torcedores colorados abraçavam-se. Sebastião e Nelito até param para tomar uma cachacinha e comentar o jogo, em um quiosque próximo do campo. Depois... cada um para seu lado. A divisão social continuava existindo. Sebastião jamais freqüentaria os saraus de Nelito, e este jamais participaria dos folguedos de Sebastião. Provavelmente, Nelito sequer atenderia pessoas como Sebastião, após formado. E Sebastião jamais teria acesso a uma medicina decente, como a proporcionada por Nelito.

Mas no “ground” da Várzea, por alguns minutos, o nome Internacional destruiu as diferenças de classes, e médicos e biscateiros foram irmãos, sem temores, sem preconceitos. Como dizia aquele hino... “Bem unidos, façamos, nesta luta final, uma terra sem amos...”.

Um dia este sentimento de igualdade sairá do campo e se espalhará pela sociedade.

Os personagens são fictícios

Os acontecimentos são possíveis

O jogo é real

Nomes de ruas e bairros na época e hoje

Boa Vista (Cabral)

Caminho do Meio (Protásio Alves)

Bonfim (Osvaldo Aranha)

Colônia Africana (Rio Branco) - A foto é da Colônia Africana, e foi retirada do site do Museu da UFRGS.