
Manhã de um sábado qualquer. Meu despertador foi o de sempre: Anselmo, o velho sabiá de peito laranja que toda manhã canta no parapeito da minha janela. Ele anunciava os primeiros raios de sol com seus tradicionais acordes: "Réco-réco!" "Réco-réco!" Acordei mas permaneci alguns minutos deitado, apenas olhando para o ventilador que pendia do teto do quarto. Fiquei sorvendo aqueles momentos com certo grau de ansiedade, afinal tinha combinado de comer a Juliana Paes. Combinei com a própria, ou melhor, ela combinou comigo. Então eu não poderia faltar, muito menos falhar. Certamente não faria uma maldade desse tipo com ela. Tudo bem... ela não tem peitões fartos nem é linda de morrer, mas quem liga? É a Juliana Paes, pô!
Pois bem, hora de levantar e encarar o frio pós-cama; Afastei o amontoado de cobertores com muito cuidado pra não acordar a mulher. Pus minhas roupas com perícia felina, dei um beijo na testa das crianças, que dormiam "chumbadas," e saí pé por pé. Rosqueei cauteloso a chave na porta de casa, sempre com o ouvido atento aos ruídos que vinham do quarto. Porta aberta, o mundo é meu: fui pro "sacrifício".
Engraçada a atmosfera na rua. O céu tomado de cinza sombrio dava contornos apocalípticos ao cenário, instalando uma tensão confusa ao meu redor. Imprecisamente, eu parecia vagar numa tela de Salvador Dalí. O cachorro são bernardo do do vizinho ignorava totalmente a moldura e lançava seus latidos guturais pra mim: "Cruyff!!!" Cruyff!!!", babava-se em raiva o cão. Incrível a casa não ter grades nem portões ou muros e mesmo assim o enorme cachorrão não saltar no meu pescoço. Mais incrível foi constatar que, ao esfregar os olhos, o cão parecia uma mistura ridícula de pinscher com cocker. Prossegui minha caminhada enquanto o cão ficou pra trás, no seu obcecado "Cruyff!!!" "Cruyff!!!". Estranho... olhando de um ângulo mais afastado o cão parecia um tigre verde...
Subi no ônibus que me levaria até os braços da Juliana Paes. Eu estava muito calmo para alguém que em instantes estaria comendo a deliciosa atriz global. O ônibus estava razoavelmente vazio e sentei-me próximo à porta de saída. Acomodei meu corpo magro ao lado da grande janela e ajeitei sobre meu colo uma caixinha embrulhada pra presente e um cacho de banana caturra. Pertences repentinos aqueles, visto que não lembrava que os carregava até então .
No banco da frente logo sentou-se um casal. Ele e ela devidamente encasacados e protegidos do frio em seus agasalhos de tons pastéis. Eles ficaram se esfregando e trocando sussurros de intimidades. Eu estava absorto com a paisagem das ruas, que passava de modo frenético pelo lado de fora do ônibus, até que um detalhe me chamou a atenção: embora parecessem brasileiros, aqueles dois eram estrangeiros. Eles falavam baixo, mas mesmo assim tentei decifrar o que diziam, porém não conseguia identificar a origem. Era um idioma muito estranho, talvez um dialeto ou até mesmo um código secreto daqueles namorados em particular. Sei lá, quem entende na plenitude as profundezas do amor?
Eu estava entretido nessa tarefa quando sentou-se ao meu lado uma mulher negra maravilhosamente linda e voluptuosa deveras. Fiquei todo animado com a colega de banco, pois tendo o ônibus inteiro à disposição a belezura escolheu sentar-se justamente ao meu lado. Privilegiado pela desconhecida beldade negra, eu já esfregava as mãos mentalmente. Seria questão de tempo - e de palavras friamente estudadas - até o bote certeiro que certamente colocaria a moça na minha cama num futuro próximo. Naquele dia, no entanto, não daria pra ser, pois como eu disse, já havia firmado compromisso com a Juliana Paes...
A mulher chegou sem pedir licença, mas mesmo assim lhe cedi espaço prontamente. Eu olhava pra frente, mas com o canto do olho percebia que a maravilhosa mulher me fitava descaradamente. Maravilha! Bem desenvolta, bem sem-vergonha, bem como eu gosto. Tomei coragem e virei-me pra encará-la. Ela exibia um sorrisão belíssimo e denunciava que estava mesmo afim. Acenei com a cabeça e soltei um poderoso "Oi, tudo bem?" Ela apenas manteve o sorriso e, empolgado, perguntei-lhe seu nome, mais ou menos assim: "Posso saber teu nome?"
Desta feita, ela franziu a testa, fez cara de incompreensão e continuou sem nada dizer. Eu já comecei a achar que ela estava tirando um sarro da minha cara e lancei-lhe a terceira pergunta: "Qual o problema?" Ela finalmente abriu o bocão carnudo e lascou um enigmático "Zumba Lumba kutra fu?" Bem, foi a minha vez de fazer cara de incompreensão... "Putz, ela tá falando a mesma língua do casal do banco da frente!" Pensei. "Será que entrei no ônibus errado? Será que este não vai pra zona sul? Todo mundo sabe que a Juliana Paes mora na zona sul!"
Levantei rápida e assustadamente, esquecendo-me da bela negra e fui em direção ao cobrador. Precisava decifrar o destino daquele coletivo urbano; Precisava saber pra onde estava indo. O cobrador estava sentado sobre umas palhas, no meio do ônibus, e tocava animadamente um bongô. Cheguei arfando até ele e perguntei-lhe para onde afinal seguia aquele maldito ônibus. Ele cessou a bateção no pequeno instrumento e de alguns ramos da palha em que estava sentado fez um cigarro de palheiro, riscou um palito de fósforo no chão de metal do ônibus, acendeu o cigarro e deu uma profunda tragada, soltando com calma baiana a fumaça dos pulmões. Olhou pra mim com cara de deboche e fulminou: "Zumba lumba kutra fu?"
De repente todos os passageiros começaram a falar alto, nesse mesmo idioma indecifrável: "Zumba lumba kutra fu" "Zerengo dengo" "Bosisca ma portinaia du mazamba" "Zêga simonha" "Seferus bum bimbala" "Surunga mastu pistoleia" "Kunga taga tonk truim"... Não era possível! Aquelas frases todas em gritaria foram se juntando, juntando, até que todos os outros sons do planeta se tornassem inaudíveis aos meus ouvidos. Tudo que eu queria era saltar daquele ônibus enlouquecedor e buscar um meio seguro de chegar até a minha Juliana Paes. Abri a janela e com o veículo em andamento saltei do seu terceiro andar. Sim, era um ônibus de três andares. Fechei os olhos durante a queda, pois um frio na coluna, uma vertigem tão indecifrável quanto o idioma falado dentro do ônibus maluco, tomou conta do meu corpo esquálido.
Minha queda é interrompida, de repente, por uma espécie de solavanco elástico. Eu caí sobre os fios de alta-tensão da avenida, os quais amortecerem minha queda e salvaram a minha vida. Inexplicavelmente não levei choque algum. Desci até o solo de maneira mais inexplicável ainda e segui a pé até algum ponto que me permitisse partir pra zona sul. O tempo passava e a Juliana Paes certamente não me esperaria o dia todo.
Eu parecia alienado aos assuntos do mundo, pois não reconhecia nem a geografia da minha própia cidade e tampouco sabia o que estava ocorrendo. Fiquei estarrecido quando vi que Porto Alegre estava em meio a um terrível conflito militar, com bunker´s posicionados em cada esquina, caças fazendo vôos rasantes e bombas e tiros vindos de todas as direções. Era eu em meio ao fogo cruzado. De repente, estava eu no centro da Rua da Praia, que virara um inferno, o verdadeiro caos descrito no Apocalipse. Onde me esconder, meu Deus? As tropas passam de um lado a outro, prédios em chamas, pedaços de corpos caindo ao meu lado. Mendigos recolhendo esses pedaços e assando-os ali mesmo, em seus refúgios debaixo dos bueiros imundos.
Eu não poderia estar em pior situação. Justo eu, que só queria comer inocentemente a Juliana Paes. Não podia ficar parado ali e me pus a correr, ou melhor, tentar correr, pois alguma força maior impedia que eu corresse de verdade. No máximo, eu trotava de modo arrastado e tão lento quanto uma tartaruga manca. Aquilo me angustiava e me dava vontade de gritar, mas nem isso eu conseguia. Era como se eu não tivesse pernas nem garganta, apenas o impulso desesperado da fuga a qualquer preço.
Parece que meu esforço atraiu a atenção dos combatentes e esses começaram a marchar em minha direção. E agora? Preciso fugir!!! Preciso fugir!!! Essas pessoas tomavam conta do centro da capital e vestiam todas a camiseta do Grêmio. Absolutamente todas as pessoas que surgiam de todos os cantos estavam trajados de Grêmio. Cadê os soldados? Cadê os soldados? Eu perguntava a mim mesmo. Que nada! Porto Alegre agora não estava mais sitiada por tanques nem canhões de guerra. A cidade vivia agora outra espécie de inferno, uma dinastia comandada por gremistas tiranos e sangüinários. O cenário mudara, mas a minha desgraça perdurava.
Aqueles gremistas começaram a me perseguir e de início tentei me refugiar em algum buraco de bueiro, mas os cruéis mendigos me expulsaram e praticamente me atiraram nas garras tricolores. Puta que pariu, não teve jeito... Ainda tentei resistir, atirando-lhes as bananas daquele cacho que eu carregava no ônibus, mas a tentativa foi inútil. Aqueles gremistas me alcançaram e arrancaram o meu pênis, levando-o embora como prêmio, como se fosse mais um grande troféu conquistado pelo imortal. E eu fiquei lá, no meio do centro de Porto Alegre, completamente nu, mas incrivelmente sem sentir frio nem dor pela mutilação recém imposta.
O que eu senti de verdade foi uma vergonha indescritível, pois lá estava eu peladão no meio da multidão que passava. E pra agravar a situação estava sem pênis! Que sensação horrível aquela, pior que nem nos bueiros podia me esconder. O que me dava forças pra seguir adiante era a imagem da Juliana Paes na minha cabeça. E peladão prossegui pela Borges de Medeiros até que do nada surge meu amigo Estéban num fusca prateado impecável e com três gatas loiras norte-americanas gostosíssimas em trajes curtíssimos. Chegou buzinando forte em seu fusquinha bacana com as loiras dependuras nas janelas do carrinho, acenando pra mim. Estéban estava de óculos escuros e fez um sinal discreto para que eu embarcasse em sua "caranga".
Ninguém no carro dizia uma palavra. Uma das loiras, compadecida da minha nudez forçada, ofereceu-me algo pra vestir, algo que ela pegou no porta-luvas do carro. Era um micro biquini rosa. Por alguma razão, preferi ficar solenemente nu...
Finalmente, a casa da saborosa Juliana Paes apontava no horizonte. Ela morava no último andar do Empire State Buiding e sua residência fazia esquina com a torre Eiffel. Estéban estacionou o carro em frente ao prédio da celebridade global e eu desci do seu fuscão turbinado. Eu mal podia crer que havia chegado ao meu destino e com algum esforço consegui conter a lágrima que teimava em querer sair dos meu olhos úmidos. Agradeci com emoção ao Estéban e esse apenas arrancou o carro e gritou da janela: "Zumba Lumba Kutra Fu!!!" As garotas fizeram coro e me mandaram beijinhos voadores, depedindo-se e sumindo junto com o fuscão do Estebán na paisagem rural da zona sul.
Enfim, era chegada a minha redenção. Entrei no enorme prédio e apertei o botão do andar de número 872. A Juliana Paes já me esperava deitadinha em seu sofá, envolta num vestidão vermelho digno de uma deusa holliwoodiana. Seu vestido estava entreaberto e era possível visualizar por dentro sua lingerie negra de corpo inteiro a ornamentar suas curvas generosas. deixei sobre a mesa da sala o presentinho que levei especialmente pra ela. Disse-lhe meio sem jeito que dentro daquela caixinha haviam algumas ampolas de silicone, para embelezar-lhe e aumentar-lhe os seios.
Ela apenas sorriu-me com aquela sua boca bem brasileira e me ordenou dengosa que me aproximasse. Tudo isso sem dizer uma palavra sequer, apenas gestos. Cheguei perto dela e aquele corpão cor de jambo parecia arder por mim. Ela não hesitou e já foi saltando com vontade na minha boca, atiçando meus sentidos e libertando minha alma. Eu era o brinquedinho da Juliana Paes e nem me importava naquela altura com a ausência do meu pênis, pois aquilo era uma experiência superior. Aquelas sensações eram etéreas e sem dúvida roçavam as aspirações divinas.
Porém, alguma coisa começava a degringolar em meio a toda essa magia. Eu não mais conseguia abraçar o corpo da minha musa naquele encaixe perfeito de outrora. Quando dei por mim, as feições da Juliana Paes se transfiguraram e agora me via atracado à tenebrosa Mulher Melancia, sem photoshop nem nada. Talvez meu pênis fosse útil agora, mas pensando bem, meu pau seria insuficiente para dar cabo daquele monte grotesco de carne.
Mas aquele cenário de horror ficaria ainda pior quando a Mulher Melancia evaporou-se e me vi trocando beijos furiosos com a centenária Dercy Gonçalves. Aquilo foi a gota d`água. Foi quando tudo começou a ser tragado por uma espiral violenta que saía das entranhas da "véia" e eu tentava argumentar, mas em vão, pois agora eu não entendia nem meus pensamentos mais. Eu fazia um esforço pra pensar em algo e tudo que eu conseguia extrair do meu cérebro eram repetidos "Zumba Lumba Kutra Fu" "Zumba Lumba Kutra Fu" "Zuma Lumba Kutra Fu"... Tudo que eu consegui de diferente foi um grito de desespero: GAAAAAAAHHHHHHHHH...
...HHHHHHHH!!!!! Manhã de sábado um sábado qualquer. Meu despertador foi um terrível pesadelo com a Dercy Gonçalves. A minha mulher ao lado, agora acordada pelo meu grito de pavor, parece incrédula com minha imagem e com o suor que escorre do meu corpo. Agora, refeito do susto, viro-me pra ela e lhe falo: "Tu nem imagina o pesadelo que acabo de ter..." Ela olha-me no fundo dos meus olhos, segura suavemente meu queixo com uma das maõs, inclina suavemente seu rosto e solta um incompreensível: "Zumba Lumba Kutra Fu?"
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Diferentemente de Hobsbawm, que apregoa estarmos vicenciando a era dos extremos, eu afirmo que, na verdade, vivenciamos, isso sim, a era da incompreensão. Ou melhor, das incompreensões. Não somos mais capazes de compreender nosso mundo, nossos objetivos, tampouco compreendemos as dores do nosso semelhante. Tudo é incompreensivelmente descartável. Os sentimentos são incompreensivelmente perecíveis. Incompreensivelmente o homem busca água em Marte e sequer cuida da água da Terra. Incompreensivelmente a Amazônia dá lugar a pastagens. Incompreensivelmente a economia do Brasil vai bem mas sua educação é uma desgraça. Assim como incompreensível é saber que o penúltimo Campeão do Mundo vai para o próximo greNAL com status de zebra absoluta contra um time não mais que modesto.
Eis o Colorado, um clube incompreensivelmente mal administrado, que tem um lunático na presidência, um vegetal na vice-presidência de futebol e o maior presidente de sua história incompreensivelmente de mero assessor desse vegetal. Pensando bem, não é tão incompreensível assim o fato de estarmos na rabeira do campeonato... Agora, querem mesmo saber o que é mais incompreensível? É, mesmo com essa onda de incompreensões que nos assola, eu continuar acreditando no homem, no Brasil e na possibilidade de ganharmos esse greNAL em pleno chiqueirão.